16/09/2010

CHEIRA A SAUDADE

Ela estava lá. Ao fundo do terreiro calcetado de pedra partida, atapetado de verdes esperanças, sob o chapéu-de-chuva ou de sol. Falava com os seus botões solitários de esperança, no poente da existência. Há um ano encontrei-a à porta. Hoje ao fundo ou no fundo do desterro da própria casa. Só!
As janelas vestidas de verde estão fechadas à luz dourada, a alegria azul do céu ou mesmo ao canto da brisa que sopra, amena, da serra.
A cor das paredes há muito que perdeu a vida e mirra numa tonalidade de lamento sentido, como o eco dum choro de menino que se derrama num vale profundo.
Os corações estão à entrada e espalham-se pelo terreiro. As campainhas pendem, amarelas, do outro lado, sobre os assentos de macadame, onde amamentou e aninhou os filhos, outrora ninho de chilreios de crianças. Os brincos de princesa deixaram de enfeitar as orelhas das crianças ou o cabelo das meninas e hoje carregam de frutos: os mimos que ninguém come, nem admiram. A velha está seca de mimos e faminta de os receber. Acho que até está faminta de dá-los, mas ninguém os aceita. Ninguém tem tempo pra ouvi-la. Apenas as ervas do terreiro ouvem o seu lamento, apenas os corações escutam as suas estórias de homens fortes que cavaram passadas na rocha e subiram a arriba e cruzaram as serras, levando nas redes os doentes e os senhorios. Só o pessegueiro escuta as estórias das meninas casadouras dadas pelo rei a um tolo, ou a estória de João de Calais. O abacateiro lembra das pancadas que levou do bordão cansado, e logo frutificou no ano seguinte como se o bordão da velha tivesse a arte mágica da bengala do Filho de Ferreiro que pesava sete quintais e meio e fazia tudo o que o seu dono lhe pedia.
Os assentos guardam tantas histórias gravadas na voz calma que adormecia as muitas crianças que pariu, sem a ajuda de médico, no quarto da casa onde a dor abafava os gritos que sufocava na garganta pela alegria do choro do nascido.
A Pereira cresceu muito, é tão velha como ela, mas todos os anos enche-se de frutos. Nela, há muito que secou a esperança de tê-los, mas, pior que isso, já nem os olhos têm a esperança de vê-los. Partiram e a velha vive no esquecimento de um número. 171. Caricato! É o número perfeito para uma porta, onde a caixa do correio é verde de desesperança, onde as teias de aranha dizem que os envelopes se perderam pelo caminho e o seu tamanho é grande para as novidades e demasiado pequeno para a saudade.
O velho pessegueiro teima em sobreviver à lepra e aos fungos da velhice, como ela, mas todas as primaveras está florido de róseas flores. Depois vingam alguns pêssegos que se tornam suculentos e aromáticos com o estio. Ela não se renova de flores, apenas os corações rubros e avermelhados da entrada lhe enchem a alma do que já foi. E a sua saudade ganha uma cor de sangue. O sangue dum coração de mãe, tão repartido como os muitos corações que caem em cachos de flores encostados à fria pedra de basalto que sustem a casa velha de negra solidão.
A velha estava lá.
Aquele quadro era uma janela sobre o futuro.
Avancei terreiro adentro. Colhi uma flor entre as muitas que floriam e ofereci-a com o beijo na face. Ela levantou a face enrugada e um sorriso enfeitou-a de grinaldas de luz. Uma lágrima correu pelos cansados vales da sua pele e disse:
- Esta flor cheira tão bem. Vivo aqui a sessenta e seis anos e nunca tinha provado o seu cheiro. Cheira a saudade!